Pai Nosso, que estais nos céus. É o nosso Pai; não há nada de real em nós que não proceda dele. Pertencemos-lhe. Ele ama-nos, visto que se ama e nós lhe pertencemos. Mas é o Pai que está nos céus. Não em qualquer outro lugar. Se cremos ter um Pai neste mundo não é ele, é um falso Deus. Não podemos dar um único passo na sua direcção. Não se caminha verticalmente. Não podemos dirigir para ele senão o nosso olhar. Não há que procurá-lo, é necessário apenas mudar a direcção do olhar. É a ele que pertence procurar-nos. Há que estar feliz por saber que ele se encontra infinitamente fora do nosso alcance. Temos assim a certeza de que o mal em nós, mesmo se submerge todo o nosso ser, não macula minimamente a pureza, a felicidade, a perfeição divinas.
"Santificado seja o Vosso nome". Só Deus tem o poder de se nomear a si mesmo. O seu nome não é pronunciável por lábios humanos. O seu nome é a sua palavra. É o Verbo. O nome de qualquer ser é um intermediário entre o espírito humano e esse ser, a única via pela qual o espírito humano pode captar algo desse ser quando este está ausente. Deus está ausente; está nos céus. O seu nome é, para o homem, a única possibilidade de a ele aceder. É o Mediador. O homem tem acesso a este nome, sendo este todavia transcendente. Ele brilha na beleza e ordem do mundo e na luz interior da alma humana. Este nome é a própria santidade; não há santidade fora dele; não tem, portanto, de ser santificado. Ao pedir esta santificação, pedimos o que é eternamente com uma plenitude de realidade à qual não está em nosso poder acrescentar ou subtrair sequer algo de infinitamente pequeno. Pedir o que é, o que é realmente, infalivelmente, eternamente, de uma maneira completamente independente do nosso pedido, é o pedido perfeito. Não nos podemos impedir de desejar; somos desejo; (...)
"Venha a nós o Vosso reino". Trata-se agora de algo que deve vir, que não está presente. O reino de Deus é o Espírito Santo preenchendo por completo toda a alma das criaturas inteligentes. O Espírito sopra onde quer. Não se pode senão chamá-lo. Não é sequer necessário pensar em chamá-lo de forma especial para que desça sobre nós, ou sobre estes ou aqueloutros, ou mesmo sobre todos, mas chamá-lo pura e simplesmente; que pensar nele seja um apelo e um grito. Assim como quando se está no limite da sede, quando se está doente de sede, não se representa mais o acto de beber em relação a si mesmo nem mesmo o acto de beber em geral. Representa-se apenas a água, a água nela mesma, mas esta imagem da água é como um grito de todo o ser.
"Seja feita a Vossa vontade". Só em relação ao passado estamos absoluta, infalivelmente certos da vontade de Deus. Todos os acontecimentos que se produzem, sejam eles quais forem, são conformes à vontade do Pai todo-poderoso. A noção de omnipotência implica-o. Também o futuro, qualquer que ele seja, uma vez realizado, ter-se-á realizado conforme a vontade de Deus. Nada podemos acrescentar ou subtrair a esta conformidade. Assim, depois de um impulso de desejo em direcção ao possível, de novo, nesta frase, pedimos o que é. Mas já não uma realidade eterna como a santidade do Verbo. Aqui o objecto do nosso pedido é o que se produz no tempo. Mas pedimos a conformidade infalível e eterna do que se produz no tempo com a vontade divina. Depois de, através do primeiro pedido, termos arrancado o desejo ao tempo para o aplicar ao eterno, e de assim o termos transformado, voltamos a pegar nesse desejo, que se tornou ele próprio, de certa forma, eterno, para o aplicar, de novo, ao tempo. O nosso desejo perfura então o tempo para encontrar, por detrás, a eternidade. É o que acontece quando sabemos fazer de todo o acontecimento realizado, seja ele qual for, um objecto de desejo. Encontra-se aí coisa completamente diferente da resignação. Mesmo a palavra «aceitação» é demasiado débil. É necessário desejar que tudo o que se produziu se tenha produzido e nada mais. Não porque o que se produziu está bem aos nossos olhos; mas porque Deus o permitiu e a obediência do curso dos acontecimentos a Deus é, por si mesma, um bem absoluto.
"Assim na Terra como no céu". Esta associação do nosso desejo à vontade omnipotente de Deus deve estender-se às coisas espirituais. Os nossos progressos e falhanços espirituais, e os dos seres que amamos, têm uma relação com o outro mundo, mas são também acontecimentos que se produzem neste mundo, no tempo. A esse título, são detalhes no imenso mar de acontecimentos, agitados, com todo esse mar, de modo conforme à vontade de Deus. Visto que os nossos falhanços passados se produziram, devemos desejar que eles se tenham produzido. E devemos estender esse desejo ao futuro para o dia em que este se torne passado. É uma correcção necessária ao pedido que o reino de Deus venha. Devemos trocar todos os desejos pelo da vida eterna, mas devemos desejar a própria vida eterna com renúncia. É necessário não se apegar sequer ao desapego. (...) Os três pedidos precedentes relacionam-se com as três Pessoas da Trindade, o Filho, o Espírito e o Pai, e também com as três partes do tempo, presente, futuro e passado. Os três pedidos que se seguem incidem mais directamente sobre as três partes do tempo e numa ordem diferente, presente, passado, futuro.
"Nosso pão, que é sobrenatural, dai-no-lo hoje". Cristo é o nosso pão. Não podemos pedi-lo senão para agora. Porque ele está sempre aí, à porta da nossa alma, na qual quer entrar, mas não viola o consentimento. Se consentimos que ele entre, ele entra; assim que não o queremos mais, imediatamente se vai. Não podemos vincular hoje a nossa vontade de amanhã, fazer hoje um pacto com ele para que amanhã ele esteja em nós a despeito de nós mesmos. O nosso consentimento à sua presença é o mesmo que a sua presença. O consentimento é um acto, não pode ser senão actual. Não nos foi dada uma vontade que se possa aplicar ao futuro. Tudo o que não é eficaz na nossa vontade é imaginário. A parte eficaz da vontade é eficaz imediatamente, a sua eficácia não é distinta dela mesma. A parte eficaz da vontade não é o esforço, que se projecta para o futuro. É o consentimento, o sim do matrimónio. Um sim pronunciado no instante presente para o instante presente, mas pronunciado como uma palavra eterna, porque é o consentimento à união de Cristo com a parte eterna da nossa alma. O pão é-nos necessário. (...) O dinheiro, a promoção, a consideração, os adornos, a celebridade, o poder, os seres amados, tudo o que introduz em nós a capacidade de agir é como pão. Se um destes apegos penetra de modo suficientemente profundo em nós, até às raízes vitais da nossa existência carnal, a privação pode deixar-nos em pedaços e mesmo fazer-nos morrer. Chama-se a isso morrer de desgosto. É como morrer de fome. (...) Nada devemos pedir no que respeita às circunstâncias, senão que elas sejam conformes à vontade de Deus. Não devemos pedir o pão deste mundo. Ele é uma energia transcendente, cuja fonte está no céu, que flui em nós assim que o desejamos. É verdadeiramente uma energia; executa acções por intermédio da nossa alma e do nosso corpo. Devemos pedir este alimento. No momento em que o pedimos e pelo próprio facto de o pedirmos, sabemos que Deus no-lo quer dar. Não devemos suportar ficar um só dia sem ele. Porque quando as energias terrestres, submetidas à necessidade deste mundo, alimentam sozinhas os nossos actos não podemos senão fazer e pensar o mal. (...)
"E perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoámos aos nossos devedores". No momento de dizer estas palavras, é necessário ter já perdoado todas as dívidas. Não se trata apenas da reparação das ofensas que pensamos ter sofrido. É também o reconhecimento do bem que pensamos ter feito, e, de uma maneira completamente geral, tudo o que esperamos da parte dos seres e das coisas, tudo o que cremos ser-nos devido, aquilo cuja ausência nos daria a impressão de termos sido frustrados. São todos os direitos que cremos que o passado nos confere sobre o futuro. Antes de mais, o direito a uma certa permanência. Quando tivemos o gozo de alguma coisa durante muito tempo, acreditamos que é nossa e que a sorte deve deixar que continuemos a gozá-la. Segue-se o direito a uma compensação por cada esforço, seja qual for a natureza do esforço, trabalho, sofrimento ou desejo. Sempre que um esforço sai de nós e que o equivalente desse esforço não regressa a nós sob a forma de um fruto visível, padecemos de um sentimento de desequilíbrio, de vazio, que nos faz crer termos sido roubados. O esforço de sofrer uma ofensa faz-nos esperar o castigo ou o pedido de desculpas de quem nos ofende, o esforço de fazer o bem faz-nos esperar o reconhecimento de quem dele é alvo; mas estes são apenas casos particulares de uma lei universal da nossa alma. (...) Ao renunciar, de um só golpe, a todos os frutos do passado, sem excepção, podemos pedir a Deus que os nossos pecados passados não tragam à nossa alma os seus miseráveis frutos de mal e de engano. Enquanto nos agarramos ao passado, nem mesmo Deus pode impedir em nós esta horrível frutificação. Não nos podemos prender ao passado sem nos prendermos também aos nossos crimes, porque aquilo que é mais essencialmente mau em nós é-nos desconhecido. O principal crédito que julgamos ter sobre o universo é a continuação da nossa personalidade. Este crédito implica todos os outros. O instinto de conservação faz-nos sentir esta continuação como uma necessidade e nós julgamos que uma necessidade é um direito. (...) A nossa personalidade depende inteiramente de circunstâncias exteriores que têm um poder ilimitado para a esmagar. Mas nós preferiríamos morrer a reconhecê-lo, O equilíbrio do mundo é, para nós, um concurso de circunstâncias em virtude do qual a nossa personalidade se mantém intacta e parece pertencer-nos. Todas as circunstâncias passadas que feriram a nossa personalidade parecem-nos rupturas de equilíbrio que devem ser infalivelmente compensadas, um dia qualquer, por fenómenos de sentido contrário. Vivemos da espera destas compensações. A aproximação iminente da morte é horrível sobretudo porque nos força a saber que essas compensações não se produzirão. O perdão das dívidas é a renúncia à própria personalidade. Renunciar a tudo o que chamo «eu». Sem excepção alguma. Saber que naquilo a que chamo «eu» nada há, nenhum elemento psicológico, que as circunstâncias exteriores não possam fazer desaparecer. Aceitar isso. Sentir-se feliz que seja assim. (...) Deus perdoou-nos as nossas dívidas quando nos pôs no estado de perfeição. Até lá, Deus perdoa-nos as nossas dívidas parcialmente, na medida em que nós perdoamos aos nossos devedores.
"E não nos lanceis na provação, mas protegei-nos do mal". A única provação para o homem é ser abandonado a si mesmo no contacto com o mal. O nada do homem é então verificado experimentalmente. Mesmo que a alma tenha recebido o pão sobrenatural no momento em que o pediu, a sua alegria mescla-se de receio porque ela não pôde pedi-lo senão para o presente. O futuro permanece temível. Ela não o tem direito de pedir pão para amanhã, mas exprime o seu receio sob a forma de súplica. Ela detém-se aí. A palavra «Pai» começou a oração, a palavra «mal» termina-a. E necessário ir da confiança ao receio. Só a confiança dá suficiente força para que o receio não seja uma causa de queda. Depois de ter contemplado o nome, o reino e a vontade de Deus, depois de ter recebido o pão sobrenatural e de ter sido purificada do mal, a alma está pronta para a verdadeira humildade que coroa todas as virtudes. A humildade consiste em saber que neste mundo toda a alma, não apenas o que chamamos o eu, no seu todo, mas também a parte sobrenatural da aceitar e rejeitar, ao mesmo tempo, a possibilidade de que a parte sobrenatural da alma desapareça. Aceitá-la como acontecimento que não se produziria senão em conformidade com a vontade de Deus. Rejeitá-la como algo de horrível. É necessário ter-lhe medo; mas que o medo seja como a perfeição da confiança.
(...) Esta oração contém todos os pedidos possíveis; não se pode conceber oração que não esteja já aí contida. Ela está para a oração como Cristo para a humanidade. É impossível pronunciá-la uma vez que seja, trazendo a cada palavra a plenitude da atenção, sem que uma mudança talvez infinitesimal, mas real, se opere na alma.
Este texto foi publicado no site da Agência Ecclesia -
http://www.agencia.ecclesia.pt/ecclesiaout/snpcultura/pedras_angulares_a_proposito_do_pai_nosso_simone_weil_2.html
Hoje, 3 de fevereiro, comemora-se o centenário de nascimento de Simone Weill.
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