Ioannis Zizioulas
Ecclesia
A tradição ortodoxa é profundamente litúrgica. Para a ortodoxia, "a Igreja vive na Eucaristia e através da Eucaristia", e a forma concreta que ela assume é o templo no qual se celebra a Eucaristia, que não por acaso toma o nome de "Igreja". O universo inteiro é uma liturgia, uma liturgia cósmica que eleva toda a criação ao trono de Deus. A teologia ortodoxa é igualmente uma doxologia, uma expressão litúrgica; é uma teologia eucarística.
O que isso significa para o homem contemporâneo? A visão do mundo e da vida mudou de tal forma com relação àquela do mundo bizantino (e continua a mudar rapidamente sob o influxo das inovações científicas, filosóficas e sociológicas) que somos obrigados a perguntar-nos: o que a vida litúrgica ortodoxa pode oferecer ao homem de nosso tempo?
Esta pergunta assume dimensões angustiantes diante da crise muito grave que o homem contemporâneo está atravessando com relação ao que se refere à sua ligação com a Igreja. A civilização ocidental, por longo tempo nutrida nos ideais do cristianismo, se descristianiza rapidamente e a Igreja, que ainda fala uma linguagem e se preocupa com problemas que pertencem ao passado, está sempre mais longe de alcançar os homens de hoje. O mundo cristão ocidental já está alargando seu olhar para abraçar o problema da secularização em toda a sua amplidão, mas por causa de sua tradição - que vive debaixo do peso da separação do mundo em sagrado e profano - acaba multiplicando e não resolvendo os problemas.
Nesta situação, a vida litúrgica ortodoxa se apresenta como um testemunho portador de esperança. Com efeito, a visão eucarística do mundo e da história que a permeia - e que, infelizmente, devido à falta de educação litúrgica não é tomada em todo o seu alcance nem pelos ortodoxos - não foi envolvida com o destino dos esquemas filosóficos e teológicos que, tornados inúteis pelo pensamento contemporâneo, colocaram em crise as relações entre teologia e vida.
A vida litúrgica ortodoxa possui uma visão própria do mundo e da criação. Uma visão que não só pode mas deve ser reintroduzida na vida atual. Ela traz em si um modo de interpretar o homem que poderia revelar-se particularmente necessária ao homem de hoje. Ela oferece, além disso, uma hermenêutica da história e de seus problemas, da vida ética e de suas possibilidades que, talvez, seja importante salientar com ênfase particular em nossos dias.
Mas, como concebemos a eucaristia quando falamos de uma "visão eucarística do mundo"? A resposta a esta pergunta é fundamental, porque a Eucaristia foi interpretada muito mal e seu sentido foi-se deformando, sobretudo na época da Escolástica. A utilização de seu antigo sentido ortodoxo e patrístico requer alguns esclarecimentos basilares.
Em nossa compreensão, a Eucaristia está unida com a manifestação de um pietismo que a vê como objeto, uma coisa e como um meio para expressar nossa piedade ou para favorecer a nossa salvação. Todavia, a antiga concepção da Eucaristia não a entendia nem somente nem principalmente como uma coisa, mas como práxis, como liturgia (é muito característico esse termo ortodoxo) e sobretudo como ação de uma assembléia (synaxis), como expressão comum, católica, de toda a Igreja e não como relação individual de cada um com Deus. É característico que a cristandade oriental, que conserva - ainda que muito inconscientemente - esta antiga concepção, jamais tenha pensado em introduzir nem liturgias individuais nem a adoração dos "preciosos dons", numa forma que os reduza a um objeto de devoção e de culto. A Eucaristia é fundamentalmente uma coisa que se realiza, é uma práxis e, sobretudo, algo que não acontece com alguém individualmente, mas é ação de toda a Igreja.
Muitas vezes vemos a Eucaristia como um sacramento entre tantos (por exemplo, entre os sete canônicos). A Igreja antiga não tinha esta concepção, introduzida em seguida, de sacramentos, mas falava de um só e único sacramento (mysterion), o "sacramento de Cristo", como se diz na Escritura . Portanto, a única compreensão possível da Eucaristia é cristológica: é o corpo de Cristo, o próprio Cristo, o Cristo total. Por isso não devemos ver nela um veículo da graça - de uma graça abstrata e independente da cristologia. Devemos vê-la como o próprio Cristo que salva o homem e o mundo e que nos reconcilia com Deus através de si mesmo. Como conseqüência, todos os problemas sobre os elementos da eucaristia, a presença real ou menos real de Cristo (a transubstanciação e assim por diante) que tão maciçamente ocuparam as disputas medievais, são secundários e nos levam simples e unicamente a uma visão da Eucaristia como coisa, como objeto. O caráter fundamental da eucaristia consiste, em vez disso, no seu ser uma reunião (synaxis) e uma ação (práxis) na qual se contempla, se recapitula e se vive todo o mistério de Cristo, a salvação do mundo.
Se nos aproximamos da Eucaristia com estes pressupostos, então forçosamente somos levados a segui-la não como uma doutrina autônoma e abstrata dos sacramentos, mas como uma liturgia concreta, do modo como vem celebrada numa Igreja ortodoxa. Então aos nossos olhos se revelará a visão particular do mundo e da história que a ortodoxia contém na sua mais autêntica manifestação.
Este texto faz parte de um ensaio de Zizioulas chamado "A Criação como Eucaristia: Proposta Teológica ao Problema da Ecologia", publicado em Ecclesia Brasil - http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/fe_e_meio_ambiente/eucaristia_e_mundo_ioannis_zizioulas.html.
Ioannis Zizioulas é Metropolita de Pérgamo. A tradução deste texto é de José Artulino Besen. Em Ecclesia Brasil pode-se ler, também, deste autor o ensaio "Eucaristia e Reino de Deus".
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