As ruas estão engalanadas festivamente. As atividades de trabalho cessaram. Um grande parêntese se abre na vida de muitos. Orquestras tocam. O rádio e a televisão fazem o mesmo. Bailes, desfiles, corsos, ruídos. Fantasias, máscaras, confetes, serpentinas. Um ritmo frenético e contagiante invade a alma de todos, arrastando-os à folia.
Embriagados nas ruas, embriagados nas casas, embriagados nos clubes, embriagados nas camas. Palavrões e gestos indecorosos. Delegacias com "lotação esgotada". O Pronto Socorro trabalha. Os policiais trabalham. Os coveiros também.
Pensamentos mórbidos. Desejos lascivos. As orquestras continuam tocando. O calor sufoca, embora seja noite. Suor e perfume. Trajes sumários. Pessoas juntas. Alegria! Alegria! Alegria!
Um cidadão estranho, vestido com uma fantasia vermelha e preta se desloca de um lado para outro da cidade. Seu rosto estampa uma alegria extravasante e sinistra. Contempla as cenas, as pessoas, o espetáculo. O cidadão fantasiado se identifica com seus súditos. Aliás, seus súditos, e não daquele gordo coroado. Esse último tem um reinado externo, falso, transitório; o seu, porém, é invisível, real, perene.
Alguns estão desanimados, o fantasiado lhes diz palavras de estímulo e incentivo: "Não sejam idiotas, entrem na folia". Alguns sentem uma dor de consciência, ele a afoga. Alguns pensam em Deus, ele apaga o pensamento, voltando-se para uns belos quadris. Todos são seus discípulos e, de uma maneira ou de outra, o obedecem.
O fantasiado é incansável. Que resistência física! Quatro dias intensos, além dos preparativos. As inspeções continuam, as ordens e sugestões prosseguem. Nada pode faltar. Muita bebida! É preciso que o maior número possível se embriague. Muita dança! Ninguém pode ficar parado. Muita música! É necessário animação.
A multidão de participantes cresce. Pobres e ricos. Pessoas de todas as cores e culturas. Para, todos se dá um jeito para "brincar".
O estranho cidadão fantasiado nem consegue contar o número dos seus seguidores. Liga o telefone de linha privativa e se comunica com seus auxiliares, com os que ficaram lá no seu reino para providenciar a recepção aos súditos mais apressados. Fala ao telefone dando um relatório otimista: "Venceremos. O mundo será nosso. Os homens não mais ligam para a cruz, nem para o nosso inimigo: o crucificado". E passa a discorrer relembrando outras magnas datas de suas conquistas: Sodoma, Gomorra, Pompéia, os últimos anos do Império Romano.
Lá embaixo, no estranho reino, os ministros do fantasiado comemoram as boas novas, apesar do calor asfixiante, das labaredas, dos clamores abafados. Uma vez ou outra se ouve gritos, choros e ranger de dentes. De vez em quando um novo imigrante...
Mas o fantasiado não está de todo satisfeito. Um punhado minoritário e obstinado de homens e mulheres se recusa a entrar na folia. Ele sopra em suas mentes: "quadrados, bolhas, piegas, cafonas". Alguns tremem. A dúvida e a tentação é semeada. A um jovem que passa com um livro de capa preta debaixo do braço, sussurra: "você não sabe o que está perdendo". Pode ser que no próximo ano o jovem se mude para suas hostes.
Esse punhado de chatos abandonaram a cidade durante sua campanha de alegria. Foram para os campos e para as praias. Retiraram-se para descansar, conversar, ler aquele livrinho imbecil de capa preta e – imaginem só – orar, conversar com o crucificado nazareno.
O pior mesmo é que eles contra-atacam. Pregam a cruz para os foliões. Falam que eles devem deixar a "boa vida", atemorizando-os com a palavra pecado e a descrição (realista, convenhamos) da situação do reino lá de baixo. Do seu reino.
Com esses chatos ninguém pode. Há uma atmosfera espiritual insuportável em suas reuniões. Estão cantando "Importa Renascer". Passando...
O homem fantasiado, de olhar estranho, deixa os chatos para trás. Lá fora, uma multidão o espera. O folião Satanás sorri.
Trecho do livro "Cristão, esse chato!"; publicado também na página virtual da Diocese Anglicana do Recife - Igreja Anglicana do Cone Sul da América - http://www.dar.org.br/bispo/news/news_item.asp?NewsID=4183.
sábado, 21 de fevereiro de 2009
Carnaval: O Folião Satanás
Robinson Cavalcanti
Diocese Anglicana do Recife
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