A Escolástica nos habituou a, antes de qualquer outra coisa, precisarmos os termos da questão. Primeiro, o substantivo, que conseqüentemente, nos coloca frente a realidades e questões substantivas: pastoral . Antes de tudo, é disso que se trata. Coisa de “pastor”. E a nossa referência, automaticamente, outra não pode ser senão, quanto reza o capítulo 10 do Evangelho de João:
as preocupações do pastor:
• o perigo constante dos assaltantes, que pulam as cercas, roubam e matam...
• o perigo dos lobos devoradores, sobretudo dos que se vestem de pele de ovelha...
• a irresponsabilidade dos mercenários, que só visam o salário, que só agem por vantagens pessoais...
as atitudes do pastor:
• entrar pela porta, ser transparente em atitudes e intenções, nada de hipocrisia e desonestidade...
• conhecer as ovelhas, chamá-las pelo nome... merecer a confiança delas...
• conduzi-las para fora do curral, aos pastos verdejantes, onde há vida em abundância... ser como uma porta que dá tanto para o abrigo seguro, quanto para as pastagens melhores...
• dar a vida pelas ovelhas...
• preocupar-se com as que estão fora do curral...
• ansiar por vê-las todas juntas, num só rebanho...
• ter a consciência de que é amado pelo Pai, porque entrega a sua vida, livremente.
É disso que se trata, quando se pensa em pastoral. Essas são as referências essenciais, Esse é nosso espelho.
Em seguida, o adjetivo, que vem qualificar, dar uma feição especial ao substantivo “pastoral”: litúrgica . E “litúrgico”...
No princípio, era todo serviço que se prestava ao povo. Um dia, séculos depois, chegará a ser “serviço religioso aos deuses, em favor do povo”, e desse jeito entrou na Bíblia.
A proposta litúrgica de Jesus no Evangelho vem juntar o conceito original de “liturgia”, como serviço do povo, com essa nova compreensão de liturgia como serviço de Deus. Essa é a lógica da parábola do Samaritano (Lc 10,25-37): debruçar-se sobre a dor do outro, curar-lhe as feridas, é a melhor maneira de adorar o Deus de Jesus. Jesus se antecipava em anunciar, desse modo, o sentido mesmo da sua própria vida, do seu sacerdócio.
A pressa de chegar aos ritos e rituais religiosos nos faz queimar etapas não só indispensáveis, como inadiáveis. É que de uns bons séculos para cá a vida da Igreja se tornou tão complexa e complicada, que a gente tem dificuldade de pensar, antes de tudo, nas coisas mais simples, essenciais e verdadeiras.
Como ser um bom pastor, nos moldes acima descritos, se, por exemplo, ao pensar em Liturgia, não nos colocamos, nem ajudamos as pessoas, desde a catequese da 1ª Eucaristia, a se colocarem diante do Samaritano da parábola, entendendo que este é o nosso manual de Liturgia Fundamental?...
Como fazer uma pastoral litúrgica que não comece por aquilo que é básico e elementar, tal como Pedro, (...), que, pouco preocupado com ser a “pedra” por excelência, se apressava em falar aos neófitos, os recém-iluminados, os recém-batizados, para que tomassem consciência da grandeza de sua dignidade de serem pedras vivas do verdadeiro templo edificado pelo Espírito, santos sacerdotes destinados a oferecerem os verdadeiros sacrifícios consagrados pelo Espírito (1Pd 2,4-9)?... Ou, como diria Paulo, como não ajudá-los a entender que a liturgia de base é, antes de tudo, algo existencial, (Rm 12,1-2); é a entrega da própria vida, tal como nos fala a Carta aos Hebreus, a respeito do próprio Cristo (10,5-10)?...
Se a gente chega à prática ritual, sem ter passado por essa experiência existencial, sem essa consciência da sua dimensão sacerdotal, estamos queimando etapas e pondo em risco a verdade dos Sacramentos da Fé, cuja realidade substancial (res) é Cristo vivo em nossa vida cotidiana, em nossas atitudes e posturas existenciais.
Imaginemos a qualidade da participação de alguém na Eucaristia dominical, após uma semana inteira de generoso esforço no sentido de seguir a Cristo no caminho da doação, com a consciência de estar dando glória ao Pai pelo serviço aos irmãos, à comunidade, ao seu povo, pela prática do amor fraterno, pelo exercício da cidadania... Quão sentida, profunda e prazerosa será sua identificação com o pão e o vinho que chegam ao altar, no momento do ofertório, mas, sobretudo, ao relacionar sua experiência de vida, naquela semana, com as palavras d'Aquele que, nos sinais do pão e do vinho, resume a entrega de sua vida pela humanidade, a oferta de si próprio ao Pai! Eis o verdadeiro exercício do sacerdócio cristão, sua essência, sua prática, sua verdade e sua autêntica celebração!
Este texto faz parte da edição setembro/outubro de 2008 da Revista de Liturgia. Maiores informações sobre esta publicação podem ser obtidas no site http://www.revistadeliturgia.com.br/.
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